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Mostrando postagens de 2020

Álbum de figurinhas

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  É  1975, eu tenho dez anos de idade e chega a Araguatins o álbum de figurinhas com premiações; são bolas, ferros elétricos, panelas de pressão, rádios, bicicletas e televisores. Para ganhar é necessário comprar o álbum e completar as páginas com as figurinhas. O ponto de venda é no hotel de Dona Eurídice. Corro até lá para ver a televisão, que só conheço de fotos. E ela se destaca em meio aos outros prêmios; é bela, compacta e imponente como a Monalisa no Louvre.  Admirado, levo as mãos à boca e arregalo os olhos. Outras crianças se aproximam. Com a TV desligada, a claridade invade o salão e reflete, na tela, a rua e as pessoas que passam em frente. Olhamos nossas sombras e, contentes, nos admiramos na televisão. Raimunda da Merência, de bermuda, camiseta, meias socket   e  Conga , observa da porta a televisão, arregala os olhos e fala ao seu modo ligeiro e peculiar de expressar-se: -  Ave Maria! Que coisa mais linda... Gente do céu, eu quero ganhar uma bicha dessas. Coisa mais linda

Fogo e paixão

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E nquanto escolho os brincos, ele se aproxima e me entrega uma calcinha adornada com plumas e laços. A calcinha é vermelha, sensual e adequada para seduzir; evoca luxúria e devassidão.  Surpresa, levo uma das mãos à boca e arregalo os olhos numa interrogação. Eu calço scarpin e visto um  Saint Laurent  preto, ombro único, justo ao corpo. Meu esposo usa um terno  Prada  e sapatos  Louis Vuitton . - Use-a. Vamos nos aquecer no baile... E ao voltar nada me impedirá de arrancá-la com os dentes.  Sussurra em meu ouvido. Eu visto; ela atiça minhas chamas e eu gosto.  O show-baile é com o cantor Wando que acaba de lançar seu novo LP e as músicas não param de tocar nas rádios. Eu sou a fã número um e temos uma mesa prime no evento. A poucos metros do palco, onde o cantor obsceno fará sua performance, nos aquecemos com um doze anos. À meia-noite, a atração principal. Wando inicia com  Senhorita, senhorita , depois  Gosto de maçã  e  Emoções.  O salão está cheio e todas as mesas ocupadas.  Entor

O astronauta

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S ozinho, eu observo a luz do sol ocultar-se atrás da linha do horizonte lunar. “A lua inteira agora é um manto negro...” No espaço vazio, a Terra . A dmiro sua beleza e quietude; abstraio e me alimento dessa calma.  Tão bela; chego quase a tocá-la. Do mar da tranquilidade a terra é tão pequena... mergulho nesse mar. Sem visibilidade, desequilibro-me até quase cair. Agacho e toco o solo com as mãos; pressiono,  afetuosamente,  as luvas contra o chão e deixo a minha marca na lua. Acaricio nosso satélite e sua tez é macia; uma acolhedora coberta de algodão em noite fria. Lembro de casa e apesar de solitário, estou confortável e aqui me sinto seguro. “Na lua, o lado escuro é sempre igual. No espaço, a solidão é tão normal...” A música está muito alta. Retiro o capacete, mas fico sem ar. Tento recolocá-lo e não consigo. Começo asfixiar e com um forte impulso levanto o corpo de uma só vez.  Acordo assustado. Era só um sonho.  Abaixo o volume do rádio; e  enquanto desperto, ainda leve e se

Uma partida de futebol

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  S ão quase cinco horas da tarde em Araguatins e um clássico juvenil se desenrola no campinho localizado entre a igreja e a Praça da Bandeira: Vasco X Goiás. O Vasco é um time melhor, e quando termina o primeiro tempo já vence o jogo por sete a zero; e entre os jogadores esmeraldinos o clima não está muito bom. Da calçada da igreja, a torcida acirra ainda mais os ânimos. Chico, Felim, Davi, Azeitona, Vande e Zé do tio Gregório; e a turma do Café Marivete:   Antônio Filho,  e meus parentes  Cará, Cupu, Zezé, Leninha e Maria Santana. Vande é quem dá a sugestão:  - Coloca o primo Cláudio, que ele é muito bom de bola.  Diz ele, enfático. Obviamente, está de sacanagem.  Ele insiste e diz que eu sou um ótimo jogador, um excelente atacante, um goleador; e que o Goiás deve tirar alguém e me colocar no time se quiser reverter o placar.  Alheio ao impasse, eu devoro uma manga e observo o discurso de meu primo. Em su a  cadeira de macarrão,  Maria faz crochê, balança a cabeça e sussurra para Len

Maria Boto, a filha das águas

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J á é madrugada e na praia do Saranzal a luz da lua reflete nos olhos que veem Corina deslizar nas águas calmas do rio Araguaia. A noite é quente e ela está nua.  Braços fortes e mãos firmes enlaçam seu corpo, e dedos furtivos invadem a sua intimidade juvenil; a moça sente arrepios de prazer.  Ele é astuto e a provoca. Entorpecida de paixão a virgem se entrega; e com ferocidade, o homem de pele rosada desfruta de sua pureza. A sinfonia das águas é corrompida pelos gemidos sufocados de Corina. Ávido, ele respira ofegante e urra como um animal.  E la se deixa fecundar.  Exausta, deita na areia fina; ao lado estão suas roupas, o chapéu e as vestes brancas do galante sedutor. E quando a manhã chega e ela desperta, ele já partiu.  -  O bucho é do boto, painho. Ele me engabelou direitinho, o safado...  Lamenta Corina, toda   chorosa. A mãe, agoniada, bate na mesa e repete:  -  Banho de rio, de paquete, não pode... atrai o boto. Eu já tinha te avisado quando ficou moça... Mas

A parede de caramelos

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A o  conhecer a fábula de João e Maria, as crianças sonham encontrar uma casa feita de guloseimas. Em Araguatins, os pequenos quando chegam a nossa casa veem ali a chance de realizar esse sonho. A cerâmica que reveste a parede da frente tem relevos que parecem caramelos derretidos; e as crianças não resistem em confirmar, passando a língua, se aquela parede é realmente feita de docinhos. Com os olhos fixos na parede, elas passam as mãozinhas sobre a cerâmica dando uma leve lambidinha no relevo. Outra, e só pra ter certeza, mais outra. -  Não é docinho . Elas dizem, dão um sorriso e vão embora. Na família, tudo começou ainda nos anos 80, com os sobrinhos que já são pais; e logo virou tradição infantil herdada por todos os descendentes. Assim que aprendem a andar, passam delicadamente as mãozinhas na cerâmica e dão uma lambidinha na parede. E mais uma, só pra ter certeza. Os vizinhos da direita,  Caboquinho e Inocêncio, e  da esquerda,   Liliu e Tontonho, disputam quem vai acha