Conto: Beleca
A
mãe acariciava o pequeno corpo. Deslizava as mãos pelos cabelos negros e
compridos, pelo bumbum, pelas pernas bem torneadas até que tocassem seus lindos
pezinhos. O bebê sorria numa explosão de alegria.
A
mãe trocava fraldinha, passava talquinho, e nunca estava cansada; dali a pouco
o bebê começava a chorar.
A mãe sabia que era a hora de papar. Primeiro a mamadeira, a aguinha, mas não adiantava... Ela não parava de chorar.
Resolveu dar o peito. Olhou para um lado, para o outro, não viu ninguém. Ajeitou-a ao seio e tentou amamentar; mas, uma voz a despertou.
- Hora de ir pra escola. Era sua mãe quem chamava.
Sem problemas. Não tinha leite mesmo; afinal, ela só tinha sete anos.
E o bebê não chorava, porque bonecas não choram. E não tinha cabelos compridos, nem negros; na verdade, quase nem tinha cabelos. Também não tinha as pernas bem torneadas... Eram tortas. Ainda assim, pensava a menina, era o bebê mais lindo do mundo. Doía o coração ter que deixá-la. Abraçava a pequena boneca e sussurrava baixinho:
- Chora não, Belequinha, mamãe vai trabalhar, mas volta logo.
O nome da boneca surgiu por acaso. Quando a ganhou era ainda muito pequena e ao tentar chamar boneca falava “beleca”. Ficou.
Ouviu a mãe gritar novamente, agora mais alto.
- Menina, vá banhar logo ou vai se atrasar. Larga essa boneca. Não sei que ceguêra é essa.
- Já vou mãe. Respondeu, levantando-se rapidamente.
Levou Beleca até a estante onde estavam as outras bonecas. Ajeitou-a no local mais confortável, deu um beijinho, sorriu e foi para o tormento do banho. Não sem antes virar-se à porta e sorrir mais uma vez para Beleca. Era a boneca mais amada, e era linda, pensava.
Todos os dias, antes de ir à escola, brincava um pouquinho com Beleca. As outras bonecas eram deixadas de lado.
Eram várias bonecas. Louras, negras, de cabelos compridos, cabelos curtos; algumas choravam, outras falavam mamãe; algumas fechavam os olhos quando deitadas, dobravam as pernas e os braços, giravam a cabeça, e tinham belos vestidos; outras eram de marcas famosas, como as duas Susi, uma loura e outra de cabelos castanhos.
Não Beleca. As pernas eram tortas e não tinham movimentos. A boca estava desbotada. Os olhos não tinham cílios, os cabelos mediam menos de um centímetro e eram espichados e fogoió. Os dedos dos pés e das mãos estavam roídos, e as unhas estavam borradas com o esmalte que a menina havia pintado. Mas era Beleca quem tocava o coração da pequena mãe.
-Ah, Beleca. Minha filhinha querida, mamãe vai trabalhar, mas não demora. Cochichou aos ouvidos da boneca e foi para a aula.
Na escola comentava com as novas coleguinhas as danações de Beleca. Não me deixou dormir. Agora começou a andar e mexer em tudo.
Na saída da aula, as colegas combinaram de no sábado se reunirem para fazerem comidinhas e enfim, conhecerem Beleca. Ela foi brincando pelo caminho de volta até chegar à sua casa. Chegou umas onze e meia. Tomou banho, almoçou, e foi assistir desenho animado na televisão; distraiu-se e dormiu.
Acordou por volta das quatorze horas. Era hora de brincar. Hora de cuidar de Beleca. Afinal, a filhinha ainda não tinha almoçado. Precisava amamentá-la.
Foi até o quarto e passou os olhos pelas bonecas. Olhou novamente... E ela não estava lá. Mamãe, a senhora viu a Beleca? A senhora pegou a Beleca? Gritou.
A mãe aproximou-se e exclamou séria: Eu dei a Beleca.
A menina não deu ouvidos à mãe e perguntou novamente: Mãe cadê a Beleca?
A mãe falou incisivamente: A filha da comadre Angelina não tem nenhuma boneca. Você tem não sei quantas. Então eu doei aquela boneca velha e feia para ela.
A menina ficou estática. A Beleca? Perguntou choramingando.
- Sim, a Beleca. Respondeu secamente, a mãe.
A menina não queria acreditar. Vou lá buscar minha boneca de volta. Disse ela decidida.
-Não vai não. Retrucou a mãe. Eu dei a boneca e você não vai buscar ela de volta. Tem um monte de bonecas aí pelo quarto; vá brincar com a Susi loura. Virou de costa e saiu.
A menina sentiu o peito arfar. Pela primeira vez experimentou a dor que não tem cura. Como podia a mãe, ser tão insensível? Eu não quero brincar com a Susi loura, exclamou. Minha filhinha, minha Belequinha. Lamentava e chorava inconsolavelmente.
Olhava para as bonecas e as odiava. Lembrava-se da pequena Beleca e se sentia culpada. Como ela pôde dormir enquanto a filha lhe era tirada dos braços... Algum tempo depois saiu do quarto.
A mãe, indiferente à dor da filha, assistia concentrada a segunda reprise da novela “A escrava Isaura” e não notou que ela se esgueirava e lentamente saia por trás do sofá; levava nas mãos a boneca Susi, nova, loura, e esguia como uma miss.
À porta de Dona Angelina gritou: Jucineide, Jucineide!
A vizinha, de nove anos, saiu toda feliz com Beleca nas mãos.
A menina propôs a Jucineide a troca das bonecas. A vizinha abriu um imenso sorriso e prontamente aceitou.
A menina correu para sua casa e entrou abraçada à boneca e sorrindo às paredes. Mas a mãe vendo a boneca nas mãos da menina, berrou: Vá já devolver a boneca, ande!
-Não, mãe. Nós trocamos. Eu dei a Susi loura pra ela. Argumentou a menina, muito feliz. Eu não gostava dela mesmo.
Mas a mãe furiosa repreendeu-lhe. Vá já destrocar as bonecas, ande. Tome vergonha, moleca. Mas era só o que faltava... Vá, e não me apareça com essa boneca feia.
A menina voltou chorando. Não queria acreditar que sua bonequinha estava novamente lhe deixando. Minha bonequinha, repetia inconsolavelmente.
Nos dias que se seguiram, ela ia visitar a boneca pelo menos duas vezes no período da manhã. Antes de ir à escola corria lá rapidinho, e às onze horas quando voltava da escola. À tarde ia umas quatro vezes. Ela levava papinha, dava banho, trocava a roupinha da boneca e até lhe pintou novamente as unhas.
A vizinha já não estava gostando muito disso. E ficava se roendo cada vez que a menina chegava a sua porta. Antipática! Pensava.
Na manhã do sábado a menina levou um vestido novo para Beleca. É de seda. Dizia. Minhas amigas vêm brincar em casa e quero mostrar Beleca pra elas. E Beleca tem que estar bem bonita, viu Jucineide? Falava com autoridade. Eu falei pra elas que Beleca está numa creche, viu? Comentou enquanto amarrava ao pescoço da boneca um manto amarelo ouro que se estendia até os pés. Parece uma princesa. Dizia.
Jucineide já não conseguia disfarçar seu descontentamento. Os olhos firmes e as pálpebras tremiam. E ao se despedirem à porta seu olhar frio se perdeu na imensidão da água que a cada dia aproximava mais de sua casa.
Era época da cheia do rio Tocantins. E nessa época em Marabá é assim, as ruas se tornam riachos e os quintais viram piscinas.
Parada à porta, ainda com os olhos firmes, Jucineide sorria sombriamente. De repente virou-se e com o semblante muito sério entrou.
Eram por volta de dez e meia quando a menina chamou pela vizinha. As amiguinhas estavam ansiosas por conhecer Beleca. A menina gritou novamente: Jucineide!
Não demorou e surgiu Jucineide, esgueirando-se lentamente pela parede. E de modo displicente ela disse: Tenho uma péssima notícia...
- O que foi? Perguntou a menina.
- Beleca morreu. Disse a vizinha.
- Como morreu? Perguntou a menina, imaginando que as bonecas não morrem.
- Morreu. Afogou-se na água do quintal. Afirmou secamente.
As amiguinhas se entreolharam tentando entender como isso seria possível.
- Ela pulou sozinha na água. E o banzeiro a levou. Eu falei pra ela não ir, que ela não sabia nadar, mas não adiantou. Êta boneca teimosa. Disse inflexível. Venham ver, venham! Insistiu. E as levou até a cozinha.
De lá, podia-se ver todo o quintal alagado como uma imensa piscina de água suja. Distante, quase ao pé da cerca a boneca flutuava balançando ao sabor do banzeiro. Beleca ia e vinha. Às vezes parecia que ia se aproximar, mas a água a arrastava e novamente ela se distanciava.
A menina inconsolavelmente triste olhava os movimentos leves da boneca na água e tinha certeza que em alguns momentos Beleca fixava os olhos nos dela, como se tentasse dizer alguma coisa. A seu lado, insensível, Jucineide sorria entre lábios.
A água adentrou lentamente pelos furos nos dedos das mãos e dos pés da boneca, e de repente o peso da água fez com que a boneca ficasse quase em pé e fosse afundando aos poucos. Por fim, afundou completamente levando atrás de si a leve capa amarelo ouro de sua vestimenta, que dava a aparência de longos cabelos louros.
A menina mudou as feições; de triste ficou serena. Olhou as amiguinhas, que ainda estavam boquiabertas, e disse:
- Vamos brincar. Beleca não morreu. Ela só foi embora pra o mar. Virou sereia.
Sorrindo, ela puxou as amiguinhas pelos braços e saiu.
Autor: Cláudio Duarte
Baseado em fatos reais narrados por Djinha Matos.