O bom menino

Nos primeiros anos da década de 1970 imperava a alegria em nossa casa quando meus irmãos, em férias escolares, retornavam a Araguatins.

Eles sempre voltavam diferentes, mais velhos, barbudos, cabeludos, cheios de novidades e vestidos na última moda.

Recordo minha irmã em uma minissaia curtíssima e pesados tamancos com solados de madeira e tiras de couro com fivelas. Um brotinho.

Meus irmãos usavam calças jeans boca de sino e camisetas tão curtas que deixavam as barrigas à mostra; nos pés, sapatos plataforma brilhosos, sandálias de couro cru ou tamancos. Dois "pão".

Naquelas férias, eles trouxeram uma bela coleção de discos internacionais de rock, uma novidade à época.

Lembro que eram discos de David Bowie, King Crimsom, Barrabás, Led Zeppelin e Jimi Hendrix. Mas, a princípio, em nossa casa, onde reinava Roberto Carlos e a Jovem Guarda, a música estrangeira não agradou muito.

- Uma barulheira infernal dessa aí, eu também faço; e faço muito melhor. Garantia nosso pai, enquanto mamãe sorria balançando a cabeça, parecendo duvidar. 

Assim como papai, achei aquela música muito ruim e, com certeza, eu acreditava que ele faria melhor.

Aos seis, sete anos de idade eu não amava nem os Beatles, nem os Rolling Stones; eu gostava mesmo era do disco do Carequinha, o palhaço que cantava minhas cantigas favoritas: O bom menino, Vaca malhada, Rock do ratinho, Marcha do carrapato, e Parabéns! Parabéns!

Enquanto isso, meus irmãos se juntavam aos colegas que, assim como eles, retornavam de Belém, Goiânia, Brasília e de outras cidades onde estudavam, e passavam a maior parte do tempo se divertindo e visitando parentes e amigos.

À beira do rio, jovens cabeludos e garotas ousadas se divertiam e bebiam cachaça com murici, sentados nas raízes das mangueiras, em frente ao Boleslaw.

Depois de muita conversa, meus irmãos e seus amigos foram curtir os discos em nossa nova radiola ABC, a voz de ouro. Mostrar os discos para sua turma e comentar os encartes era um momento especial.

É claro que, embora não tivesse sido convidado, eu também queria fazer parte daquela festa; e achava, inclusive, que a trilha sonora ideal para a ocasião era o disco do Carequinha.

Só que não; botaram Jimi Hendrix.

Eu mostrava o meu disco pra um e pra outro e ninguém se interessava. Eu insistia, tentava um diálogo, mas não adiantava.

Alguém falou: - Depois a gente ouve. Mas, não me contentei.

Como eu começava a incomodar, um dos meus irmãos me puxou pelo braço e me afastando dali, falou em grave tom: - Aqui não é lugar de criança.

Um grande equívoco! Deixar uma criança ali, em pé, ignorada, com um disco às mãos e um oceano de indignação. Eu não era um garoto intiquento, mas, dessa feita eu me enfezei.

Eles não iam mesmo tocar o meu disco e só me restava uma última alternativa. E eu sabia muito bem o que fazer.

- Mamãããããããe! Os meninos não querem deixar eu ouvir o disco do Carequinha. Gritei aos prantos e ameaçando uma birra.

Nossa mãe trabalhava o dia todo no cartório, cuidava da casa, de sete filhos e de um marido raparigueiro; como não tinha muito tempo para mediar conflitos, costumava agir com autoridade e, quase sempre, defendia os mais frágeis. 

Eu contava com isso; e a resposta foi imediata: - Podem deixar meu filho ouvir o disco do Carequinha! Bradou mamãe, cedendo aos encantos do seu anjinho caçula, que soluçava, enquanto os rapazes e moças se entreolhavam e sacudiam a cabeça.

- Qual é a música que meu filho quer ouvir? Perguntou mamãe, firme, exigindo que tirassem aquele disco ruim.

Enquanto me derretia em falsas lágrimas e observava os olhares antipáticos voltados a mim, eu disse, com uma ironia inconsciente: - O bom menino.

Porém, quando eu começava a degustar o sabor da vitória, a turma partiu; sem nem mesmo se despedir. Que grosseria!

Fiquei um pouco triste. Minha carreira de DJ não começava muito bem, e tudo porque não escolhi a música certa. Talvez, se fosse a Marcha do carrapato ou o Rock do ratinho. 

Da próxima vez... 


Autor: Cláudio Duarte

Baseado em fatos reais.

Conheça:

Carequinha – O bom menino - https://www.youtube.com/watch?v=wgGmcqxgnac

Leia aqui também:

https://www.jornaldotocantins.com.br/editorias/magazine/cr%C3%B4nicas-causos-1.1694950/o-bom-menino-1.2069927









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