Maria Boto, a filha das águas
Já
é madrugada e na praia do Saranzal a luz da lua reflete nos olhos que veem
Corina deslizar nas águas calmas do rio Araguaia. A noite é quente e ela está
nua.
Braços fortes e mãos firmes enlaçam seu
corpo, e dedos furtivos invadem a sua intimidade juvenil; a moça sente arrepios
de prazer.
Ele é astuto e a provoca.
Entorpecida de paixão a virgem se
entrega; e com ferocidade, o homem de pele rosada desfruta de sua pureza.
A sinfonia das águas é corrompida pelos
gemidos sufocados de Corina. Ávido, ele respira ofegante e urra como um
animal.
Ela
se deixa fecundar.
Exausta, deita na areia fina; ao lado
estão suas roupas, o chapéu e as vestes brancas do galante sedutor.
E quando a manhã chega e ela desperta,
ele já partiu.
- O bucho é do boto, painho.
Ele me engabelou direitinho, o safado... Lamenta Corina, toda chorosa.
A mãe, agoniada, bate na mesa e repete:
- Banho de rio, de paquete, não
pode... atrai o boto. Eu já tinha te avisado quando ficou moça... Mas tu é
cabeça-dura. Agora tá aí... estragada!
- Corina é uma menina inocente e num deve de ter se atentado... E o boto é um bicho malfazejo e perverso. Agora, o jeito é esperar; se nascer peixe nós solta no rio. Decide o pai.
Ainda muito pequena, Maria aprende a nadar. Pula das
ribanceiras e tem mais fôlego que um adulto; até parece uma piabinha nadando
pra lá e pra cá.
Já mocinha ela muda para a cidade. De
vestido, entra nas águas do rio a qualquer hora do dia e da noite e em um só
fôlego vai até muito além da Pedra Grande.
Mergulha em qualquer lugar, não há água
escura ou cachoeira que a faça temer os banzeiros; e ela até se diverte nas
correntezas do Travessão.
Os botos gostam da moça, nadam e
saltitam ao seu redor. Ela mergulha e surge muito à frente até desaparecer na
imensidão das águas ou na escuridão da noite.
E Maria, que talvez fosse Silva, vira
Maria Boto.
Os botos, na década de setenta, estão por todo o rio. Seguem os barcos a certa distância até que alguém grite:
- Boto, aqui tem moça bonita!
Eles se aproximam da lateral dos barcos e
acompanham o banzeiro, até alguém gritar novamente:
- Boto, aqui tem pimenta
malagueta!
Aí eles se afastam; e a brincadeira se
repete em grande parte da viagem.
Em Araguatins, ao por do
sol, os golfinhos da água doce nadam contra a corrente em direção às águas mais
frias da boca do rio Taquari. E
Maria Boto às vezes surge em meio a eles.
Nessa época prolifera o uso das redes
de pesca e quando um mamífero aquático se enrosca nelas é Maria Boto quem o
liberta para que ele possa ir à tona respirar.
São animais sensíveis, muitos convulsionando
e deixando imensos buracos nas malhas dos pescadores. E com o tempo, os botos
vão sendo caçados e dizimados na região.
Sem
os amigos, Maria Boto mergulha e desliza pelas águas no meio da noite, segue os
encantos dos rios e nunca mais retorna ao porto da Rua das Pedrinhas.
Para uns ela conheceu os oceanos e não
quis mais voltar; já outros, que não a conheceram, acham que tudo não passa de
uma fantasia.
E eu digo que fantasia, de todo, não é;
pois essa história eu conheço de perto. Mas, só falo da parte animal
que se enraíza na vida de Maria, e que já é uma lenda.
A parte humana, enlaçada ou não na vida
do boto, é vida privada e só diz respeito à própria Maria.
Autor: Cláudio Duarte
Obra de ficção baseada em fatos reais.
Ilustrações: Carlessandro Souza e
Cláudio Duarte