O astronauta


Sozinho, eu observo a luz do sol ocultar-se atrás da linha do horizonte lunar.

“A lua inteira agora é um manto negro...”

No espaço vazio, a Terra. Admiro sua beleza e quietude; abstraio e me alimento dessa calma. 

Tão bela; chego quase a tocá-la. Do mar da tranquilidade a terra é tão pequena... mergulho nesse mar.

Sem visibilidade, desequilibro-me até quase cair. Agacho e toco o solo com as mãos; pressiono, afetuosamente, as luvas contra o chão e deixo a minha marca na lua.

Acaricio nosso satélite e sua tez é macia; uma acolhedora coberta de algodão em noite fria. Lembro de casa e apesar de solitário, estou confortável e aqui me sinto seguro.

“Na lua, o lado escuro é sempre igual. No espaço, a solidão é tão normal...”

A música está muito alta. Retiro o capacete, mas fico sem ar. Tento recolocá-lo e não consigo. Começo asfixiar e com um forte impulso levanto o corpo de uma só vez. 

Acordo assustado. Era só um sonho. Abaixo o volume do rádio; e enquanto desperto, ainda leve e sem gravidade, recordo sorrindo que já fui astronauta. 

“Vou lembrar do tempo, de onde eu via o mundo azul...”

Os galos ainda estão cantando e uma voz me chama baixinho: - Claudinho, Claudinho... É mamãe com sua lanterna. - Acorde, meu filho; já tá na hora de levantar.

Pulo da cama e vou me batendo nas paredes até a porta que acessa o quintal e sigo para o banheiro. Ansioso, ignoro o sabonete e o banho é muito rápido.

Corro até o quarto. Em cima da cama, minha roupa já está pronta para ser usada. Passo talco no corpo e visto a cueca. Quero me aprontar logo, mas antes preciso tomar café.

Meus irmãos já comeram e se vestiram. Taís de farda escolar, Chico na fanfarra e Telma será baliza. É 7 de setembro, e tem desfile cívico das escolas de Araguatins.

Eu sou o astronauta. 

Nada mais justo; afinal, nessa idade eu vivo sempre no mundo da lua”.

E alheio aos violentos abusos da ditadura e as multicores de meu arco-íris, meus olhos infantis ainda veem um mundo azul.

No pátio do Grupo Escolar encontro Dom Pedro I, Princesa Isabel, Duque de Caxias, José Bonifácio, Tiradentes, indígenas, escravos e alunos com farda da escola.

A minha aventura na lua conta com a parceria de Gilson Pião e Cláudio Costa; Buzz Aldrin e Michael Collins. Eu sou o maior, portanto, sou Neil Armstrong.  

Atrás de nós, a seleção tricampeã. Gildásia e Célia são jogadoras e Eduardo é goleiro; Ivoneide Mendes é a taça Jules Rimet.

São seguidos pelos pelotões intercalados de alunos de fardas e encenações históricas. As crianças menores vão no rabicho.

Nonato está na fanfarra, que é seguida pelas balizas Telma, Dalte, França, Gina, Márcia, Sheila, Shirley e Silvana em evoluções de ginástica de solo.  

As apresentações acontecem em frente a prefeitura sob os olhares das autoridades. 

A diretora Otamires corre de um lado a outro e alinha os pelotões para que tudo saia perfeito.

Abre o desfile, uma moça de família com a bandeira do Brasil.

Agora é a minha vez. 

O coração bate forte e inicia-se a contagem regressiva. Encaro um universo em colapso e adentro o espaço desconhecido para viajar no céu dos primeiros cosmonautas.  

"Ao infinito... e além!"  

Os astronautas dirigem-se até o centro da praça, elevam a palma da mão direita a altura do peito, e dizem juntos: 

 - "Nós viemos em paz, em nome de toda a humanidade". 

A apresentação foi um sucesso. O desfile termina e saímos da formação em frente à escola. 

Ainda de astronauta, volto para casa brincando. 

Na praça do antigo mercado, dois garotos se aproximam e um deles me chuta na canela.

Pergunto por que ele me chutou. Arredio, ele me confronta: - Quer disputar?

Contagiado pelo desfile, eu coloco o capacete na cabeça, elevo a palma da mão direita a altura de meu peito, e digo: - Eu vim em paz, em nome de toda a humanidade.

Eles se olham, dão uma gargalhada e vão embora sorrindo. Eu também.

“Desculpe estranho, eu voltei mais puro do céu."

Desligo o rádio e volto a dormir.


Autor: Cláudio Duarte

Baseada em fatos reais.

Fotos: Arquivo pessoal

Citações:

David Bowie, Carlos Stein, Sady Homrick e Thedy Corrêa – O astronauta de mármore.

Guilherme Arantes – Lindo balão azul.

Buzz Lightyear - Toy Story

Nós viemos em paz, em nome de toda a humanidade – Frase gravada na placa de aço deixada na superfície da lua por Neil Armstrong e Buzz Aldrin, em 20 de julho de 1969.

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